Autor

Rui Matoso

A principal ameaça à democracia não é a violência nem a corrupção ou a eficiência, mas sim a simplicidade.

Daniel Innerarity, 2020

Num planeta fustigado pelo brutalismo bélico e por guerras culturais moduladas por múltiplas formas de violência simbólica, o exercício da política cultural enfrenta desafios transversais às suas metodologias e práticas. Urge refletir e reformular vetores de ação comuns a todas as vertentes, da política, da gestão e da programação cultural, visando a concretização efetiva e plena da democracia e da cidadania cultural.

Como em quase tudo na vida, o positivo e o negativo – o mais e o menos –  são cruciais ao regular funcionamento da sociedade e, muito particularmente, da esfera pública cultural. Enquanto a emergência climática reivindica menos aquecimento global, a emergência cultural requer mais ebulição do ambiente criativo, de modo a combater o negacionismo originário da política cultural fossilizada.

Não tivesse sido a persistência anacrónica de autarcas com posturas jurássicas, a cidade idílica seria, em 2024, uma urbanização densamente ecológica e o meio criativo irradiava vitalidade cultural em cada bairro nas suas diversas pulsações e modalidades. Os direitos culturais e humanos, salvaguardados em teoria pela Constituição da República Portuguesa, estariam garantidos por uma orientação política sustentada na democracia cultural participativa. Os decisores políticos administrariam estrategicamente os serviços públicos, alinhado-os com a sustentabilidade das práticas culturais da sociedade civil, prescindindo assim da decrépita tendência para o “dirigismo cultural”, sintoma afinal tão emblemático da cultura fóssil e das  monoculturas hegemónicas do antigo regime.

A transição política na governação municipal da cultura é praticamente nula, mais depressa se instalaram parques eólicos e fábricas de hidrogénio (quase) visando reduzir a pegada carbónica, do que se transita do paradigma de democratização/descentralização para o de democracia cultural/novas centralidades. 

Em 2024, celebramos as cinquenta voltas ao sol de Abril, cinco décadas da revolução que aboliu a “ditadura espiritual” do bom gosto obrigatório para o povo, e que instaurou a liberdade cultural e a democracia municipal. Há 50 anos as autarquias foram investidas das mais ambiciosas expectativas democráticas, o poder democrático local.

Da fase embrionária e experimental à atualidade, esperava-se que o exercício do poder político fosse mais participado pelos cidadãos, favorecendo um quotidiano de vivências plurais e uma cultura política de cidadania ativa, capaz de neutralizar a obediência e a submissão requeridas pelo autoritarismo prevalecente até então. Contudo, à macrocefalia da administração central acabou por suceder o microcefalismo da administração local. 

Positivamente, as autarquias locais devem assumir um papel catalisador das forças sociais da comunidade, para que estas tenham capacidade de agenciamento, uma participação ativa e emancipada. Para tal será necessário, por um lado, criar espaços de debate, crítica e criatividade, onde os problemas locais sejam analisados com base no contributo e na experiência dos vários intervenientes. Pelo lado negativo, urge combater e impedir a monocultura e a sua visão substancialista da identidade cultural homogénea, cristalizada no protagonismo cultural do municipalismo tóxico. 

A cultura, enquanto matéria de política pública, deve então ser entendida como capacidade ativa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais de que os elementos de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa e complexa do mundo contemporâneo, e para elaborar novas estratégias de vida coletiva. 

Em suma, é premente mudar a visão ornamental e distintiva da cultura para uma convivência cultural quotidiana no sentido mais amplo e não apenas no sentido artístico, identitário ou patrimonial. Nesse sentido, os municípios devem orientar o serviço público de cultura de modo a sustentar a vitalidade cultural do território, criando as condições necessárias ao desenvolvimento criativo e cultural, através de mecanismos e instrumentos, tais como: Criação de gabinetes locais de apoio a projetos culturais e criativos da sociedade civil – priorizando os mais jovens; Diversificar apoios e incentivar a pluralidade dos projetos culturais; Incentivo ao jornalismo cultural local; Conferir aos Conselhos Municipais de Juventude o seu efetivo potencial de participação democrática no âmbito da cidadania cultural e, entre outros, promover a programação colaborativa e participada dos equipamentos culturais através do debate coletivo e de novas propostas de filosofia programática e da sua operacionalização.

Rui Matoso é investigador em políticas culturais, docente na ESAD.CR (instituto Politécnico de Leiria) e gestor cultural. É mestre em Práticas Culturais para Municípios (FCSH – UNL) e doutorando no Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT), tendo obtido o título de especialista (IPL Lisboa, 2017). Na ESAD.CR, leciona na licenciatura em Programação e Produção Cultural e no Mestrado em Gestão Cultural. (Blog: https://medium.com/@ruimatoso)

/ Tradução por Linda Formiga

English Version

The main threat to democracy is not violence, or corruption or efficiency, but simplicity

Daniel Innerarity, 2020

In a planet thrashed by warmongering brutalism and by cultural wars modulated by multiple forms of symbolic violence, the exercise of cultural policy faces challenges across all its methodologies and practices. It is urgent to reformulate the common vectors of action in all domains, from cultural policies to management and programming, seeking the effective and full implementation of democracy and cultural citizenship.

As almost everything in life, both the positive and the negative – the more and the less – are crucial to the smooth functioning of society and, very specifically, to the cultural public sphere. While climate emergency urges for less global warming, cultural emergency demands a greater vibrancy of the creative environment to fight the negationism stemming from the fossilised cultural policy.

If it hadn’t been for the anachronistic persistence of local political officials with Jurassic mindsets, the ideal city in 2024 would display a densely ecological urbanisation and a creative sector in its diverse pulsations and modalities irradiating cultural vitality across all boroughs. Cultural and human rights, which are in principle safeguarded by Portuguese Constitution, were guaranteed by a political direction grounded on participative cultural democracy. Political decision-makers strategically administered public services to align them with the sustainability of social practices, thus relinquishing the decaying tendency of “cultural commandism” which, after all, is such an emblematic symptom of the old regime’s fossil culture and hegemonic monoculture. 

The political transition in the local governance of culture is practically inexistent. It was easier to install wind farms and hydrogen plants, designed to reduce the carbon footprint, that it has been to transition from the paradigm of democratisation/decentralisation to one of cultural democracy/new centralities.

In 2024, we celebrate the Carnation Revolution’s 50th turn around the sun; five decades since the revolution abolished the “spiritual dictatorship” of mandatory good taste imposed on the people, instituting cultural freedom and democratic local government.

From the incipient and experimental stage to the present, we would have expected the exercise of political power to be more participated by citizens, favouring a pluralistic daily experience and a political culture of active citizenship, capable of neutralising the obedience and submission required by the authoritarianism that prevailed back then. However, the macrocephaly of central government ended up being replaced by the microcephaly of local government.

Local governments should positively assume a role as the catalysts of the social forces in a community, so they acquire agency, and are capable of an active and emancipated participation. That will require, on the one hand, the creation of spaces for debate, criticism and creativity, where local problems can be analysed based on the contribution and experience of the different actors involved. On the other hand, it’s urgent to fight and prevent monoculture and its view of a homogeneous and substantialist cultural identity, crystallised in the cultural predominance of toxic municipalism. 

From the point of view of public policy, culture must thus be understood as the ability for active citizenship, that is, as a set of symbolic and conceptual tools needed by the elements of a community to deal with the diffuse and complex nature of contemporary life, and to design new strategies of collective life.

Rui Matoso is a researcher in cultural policies, professor at ESAD.CR and cultural producer. He holds a Master’s degree in Local Cultural Practices (FCSH – UNL) and a PhD in the Research Centre for Applied Communication, Culture and New Technologies (CICANT), having obtained the title of specialist (IPLisboa, 2017). Since 2009, he coordinates training courses in cultural management (financing and project management). At ESAD.CR, he is a faculty member of the Programming and Cultural Production degree and of the Culture Management MA program. 

In sum, there is a pressing need to substitute the ornamental and distinctive conception of culture for a quotidian cultural coexistence in the broadest sense, not limited to the strictly artistic, identitarian or patrimonial. Thus, municipalities must direct cultural public service toward supporting its territory’s cultural vitality, creating the necessary conditions for creative and cultural development through mechanisms and tools such as: The creation of local support offices to aid cultural and creative projects in the community – prioritising youth; diversify sources of support and promote the plurality of cultural projects; Promote local cultural journalism; Provide local youth councils with an effective potential for democratic participation in the sphere of cultural citizenship and promote, among other things, the collaborative and participated programming of cultural infrastructures through collective debates and the oroposal of new programming philosophies and operational plans. 

/ Translation by Diogo Freitas Costa

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