Autor

Liz Pelly

Liz Pelly é uma escritora e crítica baseada em Nova Iorque. Debruça-se sobre temas como música, cultura, media, streaming e a internet. O seu nome aparece com mais frequência no The Baffler, onde é colunista e editora colaboradora. Actualmente dá aulas de escrita sobre música no Clive Davis Institute of Recorded Music da Escola de Artes Tisch da Universidade de Nova York (NYU Tisch) e é co-autora da newletter bissemanal Cryptophasia.

Os problemas com o streaming de música corporativo são óbvios. A remuneração é irrelevante, o poder é demasiado centralizado, as malhas sociais das comunidades musicais estão a ser corroídas. Os serviços de streaming corporativos estão mais preocupados com os seus próprios produtos e listas de reprodução do que em apoiar os artistas, compositores, produtores e outras pessoas que tornam a música possível. As sugestões são entediantes, a payola é entediante, os anúncios são entediantes. A influência das grandes editoras e a “financialização” da indústria musical asseguram que os próprios serviços corporativos não mudarão.

De certa forma, estas são apenas variações sobre os mesmos problemas que sempre definiram a música mainstream. Contudo, nos últimos anos, um número crescente de músicos tem vindo a reagir ruidosa e colectivamente. Desde o início de 2020, novos grupos de músicos têm aumentado a sua participação em esforços de organização e sindicalização – dois passos importantes no processo em curso de aproximar comunidades musicais para imaginar alternativas. Os músicos estão a começar a enviar uma forte mensagem de que está na altura de tentar algo diferente.

Claro que a “música” é um grande chapéu que alberga vários tipos diferentes de práticas e de comunidades que não soam ou expressam o mesmo, com um grande alcance de objectivos e de realidades de trabalho. Ideias sobre o que torna a cultura musical “sustentável” podem assumir formas diferentes dependendo de onde se olha e de quem se questiona. Contudo, é cada vez mais claro que assegurar futuros musicais robustos significa imaginar sistemas drasticamente diferentes da actual estrutura corporativa e sair do domínio da lógica de mercado. Deveríamos conceptualizar futuros em que a música é parte integrante de um projecto maior em curso – o de libertar a arte do capitalismo.

Como parte desse trabalho, devíamos pensar sobre socializar o streaming de música. A música é uma parte integral da paisagem cultural: aproxima as pessoas, proporciona um escape, bem como um arquivo. Na melhor das hipóteses, reflecte o estado de espírito da sociedade num dado momento. É um bem público. Como seria se pensássemos sobre o acesso à música da mesma forma que pensamos sobre outras formas importantes de cultura e informação – por exemplo, sobre livros? Há muito que cópias físicas de música estão disponíveis em bibliotecas públicas, mas actualmente não conceptualizamos o acesso universal à música como um bem público, a ser gerido em prol de um interesse público com financiamento público. Devíamos.

Tornar o interesse público uma prioridade central significaria um pagamento mais justo e um tratamento mais equitativo dos músicos e dos trabalhadores da música. Também contribuiria para reparar algumas das relações mais nocivas com a música que o streaming – obcecado com o aumento da métrica de envolvimento sem preocupação pelo contexto – encorajou e exacerbou. O streaming socializado, por si só, não seria uma solução, mas seria um passo de distanciamento face a uma cultura moldada pelo propósito do lucro e um passo de aproximação a novas lógicas de escuta online. E poderia alimentar mudanças de paradigma na forma como pensamos sobre consumo cultural e em como valorizamos o trabalho criativo.

Nos últimos anos, o advogado e editor musical Henderson Cole tem vindo a pensar sobre a seguinte ideia: e se os EUA tivessem um serviço de streaming de música federal, financiado pelos contribuintes e gerido pelo governo? A proposta, intitulada American Music Library (Biblioteca de Música Americana), foi publicada em 2019 pela newsletter Penny Fractions e está estruturada em cinco pontos centrais: qualquer pessoa nos EUA poderia alojar a sua música na biblioteca; compositores e artistas poderiam carregar directamente o seu trabalho na biblioteca; o serviço seria pago por um imposto cobrado aos americanos mais ricos; a biblioteca serviria como um arquivo de preservação de longo prazo de ficheiros de música e criaria um novo sistema de royalties com o qual se pagaria os artistas, mais independente e colectivamente mais lucrativo do que o actual sistema de royalties, arcaico e disfuncional.

Com esta proposta, Henderson Cole sugere que o streaming poderia ser menos destrutivo para a sociedade se fosse financiado e organizado de forma diferente – que talvez o problema do streaming não seja o streaming em si, mas as normas da indústria predatória que o rodeiam. E se libertássemos o conceito de streaming dos seus modelos económicos actuais e criássemos algo com recursos públicos que fosse propriedade do público e que o servisse? Algo mais em conformidade com as funções das bibliotecas públicas, que hoje continuam a ser centros de livre acesso a informação, a espaços comunitários, a programas educacionais e muito mais, guiados por valores como privacidade e preservação.

Naturalmente, qualquer sistema em que a compensação está ancorada num sistema de pagamento por stream vai herdar algumas das falhas do mercado actual de streaming, ao associar a capacidade de remuneração do artista à popularidade. É uma maneira não convencional de pensar o financiamento das artes – uma maneira que seria mais eficaz enquanto parte de um forte aumento do financiamento e dos recursos disponíveis para os músicos que podem não alcançar o tipo de reprodução necessária para obter um rendimento significativo.

A fim de verdadeiramente socializar o streaming, precisaríamos de repensar mais do que a questão da propriedade. Certamente, não queremos serviços de streaming que sejam propriedade do público, mas geridos como o Spotify, a Apple Music, ou a Amazon Music. Para efetivamente desmistificar a ideia de que a tecnologia musical nos vais salvar, também seria bom abordarmos as relações de poder de forma mais sistémica, assim como a forma como as decisões são tomadas. Teríamos de pensar em como mudar realmente as dinâmicas de poder para que os músicos, os trabalhadores da música e as comunidades musicais pudessem, por um lado, ter uma palavra a dizer sobre como são construídos os serviços de streaming socializados e, por outro, pudessem participar na sua gestão. Teríamos de democratizar a forma de governação do streaming de música.

A perspectiva de um serviço de streaming socializado dá-nos uma oportunidade de imaginar como um sistema pode ser construído tendo a privacidade na linha da frente. E se não houvesse qualquer tipo de recolha de dados? E se os dados fossem recolhidos com a finalidade de apoiar e compensar os músicos, mas, como algumas bibliotecas têm feito, fossem rotineiramente apagados para proteger os utilizadores? Imagine-se como a experiência de audição de música digital poderia mudar numa plataforma onde os hábitos de fruição não fossem monitorizados e comodificados. É necessário lembrarmo-nos dos imensos compromissos que fazemos hoje, enquanto ouvintes de streaming, e como estes alteram a nossa relação com o que consumimos, permitindo que empresas gigantes e multibilionárias da tecnologia lucrem com a vigilância do que ouvimos. Teríamos de insistir na ideia de que qualquer serviço gerido pelo governo fosse construído de mdo diferente, que permanecesse um espaço não comercial.

Estas são todas grandes ideias. Na prática, o governo local pode ser a nossa melhor opção para começarmos a pensar e a experimentar o streaming socializado. A biblioteca pública, mais uma vez, surge como o espaço potencialmente mais eficaz para se começarem a advogar estruturas de streaming participativas e com financiamento público – e para se reconceptualizar o valor e o consumo culturais de formas largamente distintas do que a indústria musical faz. Actualmente, bibliotecas em Seattle, Austin, Pittsburgh e em muitas outras cidades nos EUA e no Canadá albergam colecções de música streaming somente locais, acessíveis a qualquer pessoa com um cartão da biblioteca. Além disso, pagam uma taxa fixa aos músicos participantes por uma licença de cinco anos, e em alguns casos trabalham com pessoas do circuito musical local para fazer curadoria de misturas. Aumentar o financiamento para estes projetos – bem como repensar a sua governação, para incluir músicos, trabalhadores da música e membros da comunidade musical, se isso já não estiver tudo em vigor – seria um passo no sentido de um serviço de streaming público democratizado.

O streaming socializado não resolveria todos os problemas da era do streaming de música, mas tais soluções mágicas não deveriam ser, em todo o caso, aquilo que procuramos. Deveríamos pensar no streaming socializado como uma peça de uma ampla manta de retalhos internacional feita de mudanças, com vista à construção de infraestruturas para bens culturais comuns digitais: ferramentas e recursos acessíveis e participativos que apoiariam os artistas e fortaleceriam as comunidades, incluindo alternativas de cooperação. É um caminho orientado para a descomodificação da música, abrindo precedentes para a descomodificação da cultura.

O financiamento público para o streaming seria mais consequente como parte de um aumento mais transversal do financiamento da arte e da música em geral. Desde o alargamento dos fundos nacionais para as artes até ao financiamento, a nível das cidades, de espaços de arte comunitária, passando por subsídios para artistas e colectivos, apoio a residências, espaços de estúdio subsidiados, e muito mais. A música é um bem público que torna as nossas vidas mais interessantes e as nossas comunidades mais fortes, e ainda há muitos caminhos por onde expandir a imaginação daquilo que é possível.

Uma versão mais longa deste artigo foi originalmente publicada pela revista Real Life (reallifemag.com) a 16 de fevereiro de 2021.

/ Tradução por Marta Gamito

English Version
Autor

Liz Pelly

Liz Pelly is a writer and critic based in New York. She covers music, culture, media, streaming and the internet. Her byline appears most often at The Baffler, where she is a columnist and contributing editor. She currently teaches music writing in the recorded music program at NYU Tisch, and co-authors a bi-weekly newsletter, Cryptophasia.

The problems with corporate music streaming are clear. The pay is inconsequential, the power is far too centralized, the social fabrics of music communities are eroding. Corporate streaming services are more concerned with their own products and playlists than supporting the artists, songwriters, producers and others who make music possible. The recommendations are boring, the payola is boring, the advertisements are boring. Major label influence and the overall financialization of the music industry ensures the corporate services themselves won’t change.

In some ways, these are just variations on the same problems that have always defined mainstream music. But in recent years, a growing number of musicians have started to respond loudly and collectively. Since early 2020, newly established groups of musicians have increased participation in organizing and unionization efforts — two important steps in the ongoing process of bringing music communities together to imagine alternatives. Musicians are starting to send a strong message that it’s time to try something different.

Of course, “music” is a big umbrella, inclusive of a lot of different types of practices and communities that do not sound or feel the same, with a wide range of goals and labor realities. Ideas about what makes music culture “sustainable” might take different shapes depending on where you look and who you ask. It is increasingly clear, though, that ensuring robust music futures means imagining systems drastically different than the current corporate structure, and out from under the sway of market logic. We should conceptualize futures where music is part of the greater ongoing project of freeing art from capitalism.

As part of that work, we should think about socializing music streaming. Music is an integral part of the cultural landscape: It brings people together, it provides an outlet, as well as an archive. At best it can reflect the tenor of society at any given moment. It is a public good. What would it look like if we thought about access to music the way we thought about other important forms of culture and information — for example, books? Physical copies of music have long been available at public libraries, but we don’t currently conceptualize universal access to music as a public good, to be managed in the public interest with public funding. We should.

Making the public interest a core priority would mean more equitable payment and treatment of musicians and music workers. It also would help to repair some of the more harmful relationships with music that streaming — obsessed with boosting engagement metrics without concern for context — has encouraged and exacerbated. Socialized streaming would not be a fix-all, but it would be a step away from a culture shaped by profit motives and a step toward new logics of listening online. And it could seed paradigm shifts for the way we think about cultural consumption and how we value creative labor.

For the past few years, music lawyer and publisher Henderson Cole has been thinking about this idea: What if the U.S. had a federal, taxpayer-funded, government-run music streaming service? The proposal, called the American Music Library, was published in 2019 by the newsletter Penny Fractions. It is built around five core points: anyone in the U.S. could host their music on the library; songwriters and artists could upload their work directly; the library would be paid for by a tax on the wealthiest Americans; the library would serve as an archive for long-term preservation of music files; the library would create a new royalty system with which to pay artists, separate and more collectively lucrative than the currently archaic and dysfunctional royalty system.

The American Music Library suggests that streaming could be less destructive to society if it were funded and organized differently — that perhaps the problem with streaming isn’t streaming per se, but the predatory industry norms that surround it. What if we severed the concept of streaming from its current economic models, and created something with public resources that belonged to and served the public? Something more in line with the functions of public libraries, which today remain hubs for free access to information, community space, educational programs and more, driven by values like privacy and preservation.

Of course, any system where compensation is tied to a per-stream royalty is inheriting some of the faults of the current streaming marketplace, by tying an artist’s ability to earn compensation to popularity. It’s an unconventional way to think about arts funding — one that would be most effective as part of a more robust expansion of funding and resources available to musicians who might not elicit the type of replayability necessary to earn significant income.

In order to truly socialize streaming, we’d need to rethink more than just ownership. We would not want streaming services owned by the public but run just like Spotify, Apple Music, or Amazon Music. To truly untangle the mindset that music tech will save us, we’d also want to address power relations more systemically, and how decisions are made. We would need to think about how to truly shift power so that musicians, music workers, and music communities could have a say in how socialized streaming services are built, and participate in how they’re run. We would need to democratize the governance of music streaming.

The prospect of a socialized music streaming service gives us an opportunity to imagine how a system might be built with privacy at the forefront. What if there was no data collection at all? What if data was collected in order to support and compensate musicians, but, as some libraries have done, routinely deleted to protect users? Consider how your digital music listening might change on a platform where your listening habits were not being tracked and commodified. We need to remember the immense compromises we make as streaming listeners today, and how it changes our relationship to what we consume, allowing multi-billion dollar tech companies to profit off of the surveillance of our listening. We would need to insist that any government-run service be built differently; that it remain a non-commercial space.

These are all big ideas. Practically, the local level might be our best option for beginning to think about and experiment with socialized streaming. The public library, again, comes to mind as potentially the most effective space for beginning the work of advocating for participatory, public-funded streaming structures — and reconceptualizing cultural value and consumption in vastly different ways than the music industry does. Currently, libraries in Seattle, Austin, Pittsburgh and several more cities around the U.S. and Canada host locals-only music streaming collections accessible to anyone with a library card. They pay a flat fee to participating musicians for a five-year license, and in some cases work with folks from the local music scene to curate mixes. Increasing funding for these projects — as well as rethinking their governance, to include musicians, music workers, and music community members, if that’s not all in place already — would be a step towards public democratized streaming.

Socialized streaming wouldn’t fix all of the problems of the music streaming era, but such fix-all solutions shouldn’t be what we’re after anyway. We should think of socialized streaming as one piece of a greater, international patchwork of shifts, toward building infrastructure for digital cultural commons — accessible and participatory tools and resources that would support artists and strengthen communities, inclusive of cooperative alternatives. It moves us in the direction of decommodifying music, setting precedents for decommodifying culture. Public funding for streaming would be most compelling as part of a broader increase in art and music funding overall: from the expansion of national arts funds, to city-level funding for community art spaces, grants for artists and collectives, support for residencies, subsidized studio space, and more. Music is a public good that makes our lives more interesting and our communities stronger, and there are still so many more directions in which to expand our imagination of what’s possible.

A longer version of this article was originally published by Real Life magazine (reallifemag.com) on February 16, 2021.

/ Tradução por Marta Gamito

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